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Amanda Queiroz: “A sociedade colocava na minha cabeça que eu não podia sonhar. Que eu não tinha direito de sonhar”

Por Gabriele Soares

Amanda no Estúdio Grupo OBoticário em São Paulo — Foto: Arquivo Pessoal
Amanda no Estúdio Grupo OBoticário em São Paulo — Foto: Arquivo Pessoal

Quando nem as ruas e nem as esquinas conseguem impedir alguém com o sonho de chegar até um lar.


A primeira vez que Amanda viu uma travesti na rua não era certa, mas como se referia a elas na infância ainda é uma memória viva: “Eu dizia ‘aqueles viados que se vestem de mulheres’”.


Mas foi ao observá-las e perceber que ninguém as xingava, ninguém jogava pedra, ninguém ia para cima bater, que Amanda pensou pela primeira vez que queria aquilo para sua vida. Queria ser deixada em paz. Em sua infância sofria bullying pelos meninos da escola, era perseguida até em casa e agredida; já as travestis da rua eram rodeadas pelo estigma de que eram perigosas e iam te cortar com uma gilette. Pareciam conseguir “paz”.


Isso a ajudou a se entender e se reconhecer como Amanda, porque “Antes de me descobrir, eu sempre fui um menino. Porque, sim, eu já fui um menino em uma época da minha vida.”


Então uma festa de Carnaval da escola aconteceu. O menino entrou na área de trabalho da mãe costureira, pegou um vestido da tia e se vestiu para ir até a festa. E aquele dia foi o primeiro da vida de Amanda que ela voltou para casa andando e não  fugindo dos garotos e do bullying. 


Quando Amanda “tornou-se” Amanda, foi para que o mundo a enxergasse como tal, mas ela não entendia o que aquilo lhe custaria: o direito à educação, à saúde, a um relacionamento. “Não teria direito a nada”, desabafa.


Sem uma uma base familiar e educacional que a respeitasse e sem um espaço que lhe acolhesse, ela começou a se prostituir. E a prostituição era atrativa. Era sinônimo de impulsividade e ela gostava de viver na loucura. Porém, um ciclo vicioso começou a rodear sua vida.


Ela foi traficada de Fortaleza para São Paulo para trabalhar em casas de prostituição. Lá, além de sofrer o abuso psicológico ao vender o próprio corpo — a única coisa que ela tinha — ela foi submetida a diversas agressões. Quando voltou para Fortaleza, com o corpo e a alma cheios de marcas, estava afundada no uso de substâncias psicoativas. “Ser uma mulher trans na prostituição está atrelado ao uso de drogas. Não tem nenhuma estrutura psicológica”, relata.


Amanda comenta que esteve em uso prejudicial de drogas dos 12 aos 24. Ou seja, ela se prostituiu quando ainda era menor de idade. O fetiche não estava somente atrelado ao corpo trans, mas também ao corpo infantil.


A dependência química a fez roubar de sua família, vender as coisas da casa para bancar o vício e, assim, passou a viver nas ruas. E mesmo sob o uso excessivo das drogas, o que mais passava pela sua cabeça era o quanto ela sonhava em crescer e viver bem como todo mundo. Ser saudável, ter um amor. E desde o começo, ela era impedida disso. O mundo e a vida nas ruas, segundo ela, a impedia de sonhar.

Os conhecidos passavam por onde ela estava, ela pedia comida mas sempre fugia antes da marmita chegar. Até que um “despertar espiritual” aconteceu e ela pediu ajuda para a família depois de anos sem se falarem. A mãe a acolheu e Amanda se internou pela décima segunda vez.


Nas outras onze vezes, numa comunidade terapêutica evangélica, tentaram fazê-la acreditar que o problema não eram as drogas, era o seu “transexualismo”. Mais uma vez, agressão psicológica. Ela era dopada constantemente e seu cabelo era raspado. “Eles queriam que o menino fosse tratado, cuidado, protegido. Mas o menino não usou droga. Não sofreu abuso. Ele era amado, querido. Ele se foi. E a Amanda quem usou droga, quem sofreu”, conta.


Na última vez em que se internou, conseguiu chegar até a sobriedade. Mas só foi curada porque foi vista e tratada como mulher e respeitada pela primeira vez. Na casa dos pais, Amanda precisou ter uma rotina que nunca teve. Ela batia de porta em porta e perguntava “Posso fazer seu cabelo?”. Foi assim das sete da manhã até às cinco da tarde todos os dias até abrir o seu primeiro salão. O que ela mais sentia era medo de voltar para as ruas e para a prostituição, onde não tinha controle e nem saída.


Hoje, Amanda reconhece que não está mais na linha de frente contra a transfobia diária, como a maioria. O alvo não está mais nas suas costas. Ela não está mais nas ruas e nem nas esquinas, mas a insegurança do mês seguinte por ser uma mulher trans empreendedora ainda a persegue.


Com o seu salão, ela faz um trabalho comunitário. Faz dele um espaço para que as pessoas se sintam bem em todos os campos. Mulheres vão cuidar da sua aparência, claro, mas Amanda também abre as portas para conversar e desabafar, se quiserem. O preço é social pois, saindo da vulnerabilidade, ela entende que muitas pessoas, cis ou trans, pesam nas prioridades em casa se tirarem 100, 200 ou 300 reais para fazer o cabelo.


Amanda acolhe outras travestis em casa e as ensina sua profissão, assim como ela aprendeu muito no curso de costura da Casa de Andaluzia — que participou não por interesse, mas para sobreviver. Lá, lhe ofereceram comida e afeto, “E aí quando eu cheguei na Andaluzia, eu tenho consciência de que o amor transforma, né? O amor, ele me transformou”, pontua. “Meu sonho é que todo mundo experimentasse a dignidade que eu experimentei”.


Para quem nunca acreditou que mulheres como ela fossem bem sucedidas ou dignas de algo, Amanda agora busca ser o exemplo que nunca teve. Afinal, quase não há outras que sairam da prostituição e da dependência química e encontraram sucesso, “Morreram no meio do caminho. Eu sou meu exemplo”, completa. Ela saiu do papelão, transformou sua vida e, hoje, transforma a de outras pessoas.


Agora, noiva e com uma carreira, os seus maiores sonhos estão sendo alcançados: ser digna do amor, se casar, ter uma família, ser avó, estar viva. “Hoje eu estou aqui quebrando as estatísticas. Mulheres trans com 30 anos eram para estar mortas”, Amanda Queiroz declara e eu finalizo.


 
 
 

1 comentário


monbayrodrigues
25 de set.

Uma história dura, difícil, de amargar o coração, mas com um final feliz. Toda felicidade do mundo Amanda!

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© 2023 por NeoMarsha

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