Qual cor representa a dor? Qual cor representa a esperança? Qual cor representa a mudança? Para mim, após ler a premiada obra da escritora norte-americana Alice Walker, a resposta para essas perguntas só pode ser A Cor Púrpura.
Ambientada no Sul dos Estados Unidos, em um período de intensa segregação racial, o livro conta a história de Celie, uma mulher negra, pobre, que descobre amar mulheres. Desde a primeira frase a autora consegue deixar evidente que a trajetória da protagonista será marcada por sofrimento.
Ainda na infância, Celie foi abusada sexualmente pelo padrasto, com quem teve dois filhos. Na adolescência, foi forçada a casar com um homem violento e separar-se dos únicos que ainda traziam uma espécie de conforto a ela: os filhos e sua irmã mais nova, Nettie.
O casamento forçado de Celie e Albert era conturbado. Ele não enxergava a jovem como esposa, direcionando a ela constantes agressões físicas e morais. Para Albert, sua função era apenas obedecê-lo e servi-lo, cuidando da casa e de seus filhos. Dos quatro filhos do “Sinhô” – como Celie o chama –, Harpo é com quem ela consegue desenvolver uma relação mais próxima.
Logo novos personagens são inseridos na história, cada um carregando sua importância para o desenvolvimento da trama. Conhecemos Sofia, uma jovem forte e decidida com quem Harpo casa-se e constrói uma família. Também somos apresentados à charmosa Shug Avery, cantora e amante de Albert. Algo notável é como a obra é cheia de personagens marcantes, cada um com diversas nuances.
A autora Alice Walker, também poeta e ativista feminista, publicou A Cor Púrpura em 1982, o que lhe rendeu o Prêmio Pulitzer em Ficção. Mas as diversas camadas com as quais a escritora constrói a história e seus personagens torna tudo muito real, fazendo-nos até esquecer em alguns momentos que ali trata-se de uma ficção. Acredito que esse esquecimento também advém da consciência que temos de que a narrativa apresentada se aproxima de muitas histórias reais.
A autora Alice Walker e a versão norte-americana do livro
O livro não é dividido em capítulos, mas em cartas. As cartas são escritas pela própria Celie e direcionadas principalmente para Deus e Nettie. A linguagem das cartas é informal e não segue regras gramaticais. No início, algumas disposições de elementos podem causar certo estranhamento, mas logo acostuma–se e a maneira como Celie escreve nos aproxima do seu ponto de vista, de seus pensamentos e reflexões.
As cartas não apresentam data, mas os saltos temporais são percebidos entre um escrito e outro. Essa estruturação da obra pode causar a impressão de que alguns pontos e detalhes serão perdidos no caminho. Entretanto, a construção de cada carta é feita de modo que tudo fique explicado. O uso desse recurso, as cartas, traz uma sensação de intimidade e leva o leitor à maior imersão na história.
Mas não apenas de cartas escritas por Celie o livro é formado. A partir de certo ponto, também temos acesso a cartas escritas por Nettie e passamos a acompanhar suas vivências como missionária. Apesar do longo tempo distantes, as palavras das duas irmãs são cheias de amor e acolhimento, ansiando pelo reencontro. Antes de ir embora, Nettie afirmou: “Só a morte pode fazer eu num escrever procê”. Com isso, a autora não deixa apenas Celie esperando pelas cartas, mas também cada leitor.
Apesar do intenso sofrimento apresentado ao longo de todo o enredo, a história traz uma “redescoberta de si". A autora retrata com maestria a complexidade que permeia as relações humanas. Nada e nenhum personagem é desenvolvido de maneira simplista. Talvez este seja um dos motivos que os torna tão interessantes.
Pode-se observar tal complexidade, por exemplo, quando Celie aconselha Harpo a bater em Sofia para que ela passe a “respeitá-lo”. Como uma mulher que sofre diretamente os males de uma relação violenta apresenta esse posicionamento? O que está por trás dessa fala?
A Cor Púrpura tece uma série de críticas às questões que, infelizmente, ainda são muito atuais. Machismo, misoginia, racismo e preconceito social são algumas delas. Algumas falas são como um soco certeiro, que nos deixa desnorteados pela dor que causam. Como a seguinte, dita para Celie por Albert:
“Quem você pensa que é? ele falou. Você num pode amaldiçoar ninguém. Olhe pra você. Você é preta, é pobre, é feia. Você é mulher. Vá pro diabo, ele falou, você num é nada.”
Outro ponto interessante é como o livro traz personagens femininas tão diferentes umas das outras. É como um enfrentamento aos comportamentos e visões machistas da época, que reduziam a mulher a uma posição específica. Cada uma tem suas metas, desejos e necessidades. Ao longo da narrativa, cada uma constrói sua trajetória à sua própria maneira. Mas ainda assim, é visível a importância que cada uma tem para o “redescobrimento” da outra.
A redescoberta de Celie é impulsionada fortemente pela presença de Shug. O romance inesperado entre Celie e a amante do marido torna o enredo ainda mais intrigante. Foi amor à primeira vista. Cada detalhe de Shug encanta Celie, que desenvolve uma profunda admiração. É Shug Avery, em grande parte, que incentiva Celie a se conhecer e lutar por si.
Mas o romance entre elas também não é desenvolvido de forma comum. Com uma série de idas e vindas, de novas relações pelo caminho, as duas vão construindo uma relação de companheirismo, acolhimento e compreensão única. Uma relação realmente delas, sem preocupação em seguir uma normatividade.
Diante de uma história marcada por sofrimento desde as primeiras páginas, certas expectativas podem ser construídas sobre o seu desfecho. Mas, adianto que Alice Walker consegue surpreender com os rumos tomados. A Cor Púrpura passa a representar transformação, redenção e resiliência. Simboliza a esperança de que, apesar da dor, a vida ainda pode ser boa.
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