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Foto do escritorAna Massonila

Kim Jiyoung, nascida em 1982: e onde fica o direito de ser mulher?

Era uma vez Simone de Beauvoir, filósofa existencialista e escritora da obra “O Segundo Sexo” (1949), na qual afirma que ninguém nasce mulher, mas torna-se uma por uma série de normas estabelecidas pela sociedade para construir a compreensão de gênero. Vários anos mais tarde, em 1990, a pensadora Judith Butler lança o livro “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade” e vai um pouco além do pensamento de Simone: o gênero não é só uma construção social, mas uma construção discursiva feita tanto pelo outro, quanto pelo próprio sujeito.


Ora, seja qual for a explicação por trás da definição de “mulher” que exista dentro dos campos de estudo, o fato é que não é fácil ser uma. Kim Jiyoung, a personagem principal do livro “Kim Jiyoung, nascida em 1982”, da autora sul-coreana Cho Nam-joo, é um grande exemplo disso.


Cho Nam-joo, autora do livro “Kim Jiyoung, nascida em 1982” / Reprodução: The New York Times

O livro foi publicado no dia 14 de outubro de 2016, pela Minumsa Publishing Co., e chegou ao Brasil em março de 2022, pela editora Intrínseca. Ainda em 2019, ganhou uma adaptação para o cinema sul-coreano. “Kim Jiyoung: Born 1982” é um trabalho da diretora Kim Bo-young e conta com grandes nomes da indústria cinematográfica sul-coreana, como a atriz Jung Yu-mi no papel de Jiyoung e o ator Gong Yoo, recentemente reconhecido por sua aparição na famosa série da Netflix “Round 6” (2021), interpretando o marido da personagem principal.


O livro que inspirou o filme narra a história corriqueira de Jiyoung, uma mulher casada de 33 anos que largou a carreira dos sonhos em uma agência de marketing para cuidar da filha recém-nascida em tempo integral. Soa familiar? Bem, assim como toda a trajetória de Jiyoung.


Atriz Jung Yu-mi no papel de Kim Jiyoung / Reprodução: BBC News

Enfrentando uma possível depressão pós-parto, o comportamento errático de Jiyoung começa a preocupar o seu marido quando ela passa a incorporar as vozes de diversas mulheres, estejam elas vivas ou mortas. Ele, então, a aconselha a procurar um psiquiatra e toda a história de vida de Jiyoung é contada através das palavras do médico.


A narração é direta e certeira, muitas vezes se igualando a sensação de um soco no estômago. Jiyoung é a filha do meio de três irmãos, uma irmã dois anos mais velha e um irmão cinco anos mais novo. Ela cresceu com os pais e a avó paterna. Aprendeu, desde cedo, que tudo pertencia ao seu irmão, fosse bens materiais ou o amor dos familiares, enquanto a sua irmã e ela viviam das sobras divididas.


Nos primeiros anos da escola, Jiyoung era uma boa aluna, mas ainda assim foi obrigada a ser a dupla de um garoto que praticou bullying consigo, porque a professora justificou suas atitudes ao dizer que ele a importunava diariamente por nutrir sentimentos românticos pela menina.


No ensino médio, Jiyoung era assediada nos ônibus, no metrô e até mesmo pelos professores da escola, assim como todas as suas colegas de classe. Chegou a ser seguida por um colega do seu cursinho preparatório para o vestibular, que confundiu a sua cordialidade em cumprimentá-lo diariamente com flerte. Jiyoung conseguiu a ajuda de uma estranha no ônibus para se livrar do rapaz e levou uma bronca do pai em casa, quando ele ficou sabendo do ocorrido. Afinal, era culpa dela por cumprimentar desconhecidos e vestir “saias curtas”.


Na faculdade, Jiyoung descobre que, mesmo com as melhores notas ou o currículo mais brilhante, seria difícil conseguir um emprego desejado, uma vez que as empresas priorizam os candidatos homens e consideram as mulheres complicadas demais para serem contratadas permanentemente. Usufruir do direito à licença maternidade, quando ser mãe é uma obrigação que circunda Jiyoung e suas conhecidas desde cedo? Que absurdo!


As tribulações do estigma de ser mulher não são personificadas apenas por Jiyoung. Com sutileza, Nam-joo destrincha essa realidade também através das mulheres que cercam a personagem principal: a irmã de Jiyoung, que abandona o sonho de ser produtora de televisão para ser professora, por conta da segurança e garantia de estabilidade financeira; a mãe de Jiyoung, que abre mão dos estudos pela obrigação de sustentar a família; as suas ex-colegas de trabalho, que sofrem com um caso de câmeras escondidas instaladas no banheiro feminino da empresa.


Trazendo dados de pesquisas sobre as novas leis contra discriminação de gênero adotadas pela Coreia do Sul desde 2001, que são incorporados ao texto como meros elementos narrativos, Nam-joo constrói um dilema perspicaz: se há tantos avanços progressistas a favor das mulheres, por que Jiyoung ainda sofre inúmeras injustiças em seu dia a dia, como ser assediada moralmente por superiores ou convencida pelo marido a abandonar o emprego pelo qual tanto batalhou para cuidar da filha e ainda ser julgada socialmente por isso?


Cena do filme “Kim Jiyoung: Born 1982” (2019) / Reprodução: Lotte Entertainment

O livro curto e rápido de Nam-joo, que vendeu mais de um milhão de cópias mundialmente e foi traduzido para 18 idiomas, nasceu da vontade da ex-roteirista de televisão de retratar a sua própria realidade, como uma mãe que precisou deixar a carreira para cuidar do filho. Contudo, acaba por reverberar na vivência de tantas outras mulheres pelo mundo todo. Afinal, a Coreia do Sul está a uma distância de doze horas do Brasil, mas o nosso país, ainda em 2017, possuía uma realidade em que quase metade das mulheres perdiam o emprego após a licença maternidade, muitas vezes por iniciativa do empregador, segundo pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).


“Kim Jiyoung, nascida em 1982” é construído em cima do embate irônico entre a sociedade e suas legislações, que se dizem cada dia mais a favor dos direitos das mulheres, contra a verdadeira realidade que estas enfrentam nos aspectos mais corriqueiros das suas vidas. Por exemplo, serem negadas a usufruir da liberdade de ir e vir ou obrigadas a se encaixar nos moldes contraditórios do que é imposto como “boa esposa, mãe e filha”.


Nam-joo descreve com esperteza a maneira como a misoginia, o sexismo e o patriarcado estão tão intrínsecos nas raízes sociais que discriminações, como as que Jiyoung enfrenta durante toda sua vida, não serão resolvidas ao menos que o verdadeiro problema seja reconhecido e encarando de frente. Não adianta apenas conceder direitos às mulheres, se os homens — com ênfase no homem cis, hetéro e branco — ainda não estão dispostos a abrir mão dos seus privilégios e o sistema não é capaz de garantir o funcionamento apropriado dessas leis para todas as que se constroem social e subjetivamente dentro do gênero feminino.


“Kim Jiyoung, nascida em 1982” é um livro que não retrata somente os diversos desafios que as mulheres enfrentam apenas por existirem. Ele também levanta o questionamento sobre até onde vai o direito de ser mulher, em um mundo que ainda se sente tão incomodado quando nos negamos a nos sacrificar por jornadas duplas de trabalho exaustivas e não recompensadas ou exigimos o mínimo respeito de não sermos tocadas quando dizemos, pensamos e imploramos: não.

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