No primeiro domingo de novembro (5), o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foi aplicado em todo o Brasil e trouxe como pauta no tema da redação uma questão ainda estrangeira para os nossos ouvidos bem treinados a ignorá-la: o trabalho de cuidado. Mais especificamente, os desafios para a invisibilidade desse serviço realizado por mulheres no país.
Também conhecido como “economia do trabalho”, o termo abrange todas as atividades desempenhadas em prol do bem-estar de terceiros, como os serviços de profissionais da saúde ou os cuidados com crianças, idosos ou pessoas com deficiência físicas e mentais, entre outros, os quais estão aliados muitas vezes aos serviços domésticos. O próprio termo “cuidado” já é autoexplicativo: está relacionado com demonstrações de atenção, afeto, zelo e responsabilidade tanto sobre si quanto sobre outros. Um papel executado majoritariamente por mulheres, desde o momento em que os humanos começaram a se organizar em comunidades.
Antes do século XVIII, o mundo do trabalho era dividido dicotomicamente em esfera pública e esfera privada e as habilidades requeridas para a realização dos serviços eram biologicamente determinadas. Os homens dominavam o ambiente público, aquele que se estendia para fora de casa e era considerado relevante por conta da geração de renda, enquanto a responsabilidade feminina recaía no ambiente privado: cuidar dos domicílios. Com a evolução das sociedades e uma maior presença dos movimentos feministas, as mulheres conseguiram ocupar mais espaços no mercado de trabalho público, contudo ainda carregando o compromisso histórico e social com o cuidado da casa e dos familiares.
Infelizmente, essa não é uma realidade longínqua, restrita à época em que o capitalismo começava a se estruturar com a Revolução Industrial e as mulheres conseguiam mais empregos por conta da mão de obra barata. Atualmente, o cenário ainda é um em que as mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam 12,5 bilhões de horas, todos os dias, ao trabalho de cuidado não remunerado, segundo relatório publicado esse ano pela Oxfam.
Especificamente no Brasil, de acordo com uma pesquisa elaborada em 2022 pelo IBGE, as mulheres passam, em média, 21,3 horas semanais em atividades domésticas, enquanto os homens dedicam apenas 11,7 horas. Visualizamos, aqui, um quadro onde as mulheres gastam o dobro de horas no trabalho de cuidado a mais do que os homens, acabando consequentemente por ficar presas em duplas jornadas de serviço exaustivas ou muitas vezes dependentes do salário dos maridos. Esses que, para além das obrigações do seu emprego, não precisam se preocupar em trocar as fraldas das crianças ou lavar as roupas.
“As mulheres nasceram para cuidar”, esse é um preocupante senso comum que nos é imposto ainda nos primeiros anos de vida: enquanto os meninos são estimulados à competição e ao aprimoramento de suas habilidades pessoais, as meninas aprendem a arrumar a casa e fazer comida com brinquedos. O gênero feminino construiu-se como uma performance dessas normas, de acordo com Butler, o que naturalizou o trabalho de cuidado como uma habilidade intrínseca e restrita à mulher, não um serviço prestado ao funcionamento da economia social.
Ainda conforme o relatório da Oxfam, a contribuição de mulheres e meninas na economia global, através do trabalho de cuidado não remunerado, equivale a 10,8 trilhões de dólares. Ou seja, trata-se também de uma questão econômica: a disparidade na desigualdade de gênero através da divisão desbalanceada do trabalho de cuidado dificulta a entrada e permanência do público feminino no mercado de trabalho, o que, consequentemente, afeta a equiparação de renda entre homens e mulheres.
Um levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), feito esse ano, apontou que o rendimento médio mensal das mulheres no mercado de trabalho é 21% menor do que o dos homens. Dentro desse quadro, 91% do número de mulheres ocupam cargos de serviços domésticos, em que o salário é 20% mais baixo do que o dos homens.
Além disso, essa normalização do apagamento do trabalho de cuidado transpassa as questões de gênero, uma vez que também é equiparado pelos vetores de raça e classe social. É uma grande bola de neve, no fim das contas: a economia do trabalho não entra efetivamente em pauta nas agendas políticas porque somos um país moldado pelo sistema patriarcal e socialmente desigual, o qual nasceu da escravidão e do racismo.
No Brasil colonial, as mulheres negras escravizadas realizavam os trabalhos nas casas dos senhores de engenho, muitas atuando como amas de leite e sendo responsáveis pelas crianças e por todos os afazeres domésticos. No Brasil de hoje, ainda segundo o IBGE, as mulheres pretas possuem o maior índice de realização dessas tarefas, sendo de 92,7%, o que supera a proporção de mulheres pardas (91,9%) e brancas (90,5%). Esse é um cenário que não pode ser descolado da história do país, visto que essas são sujeitas que já nascem com dois marcadores sociais bem definidos: o de ser mulher e o de ser negra, como afirmou bell hooks.
Tornar parte da natureza feminina o cuidado — e da natureza de mulheres pretas o cuidado e a exploração — é um dos cernes para a questão da invisibilidade desse serviço no país. Trazer a pauta para o Enem, o maior exame estudantil nacional, provavelmente foi um dos primeiros passos para afirmar a importância de debater essa desigualdade social e trabalhista. Contudo, o Brasil é um país que ainda se ancora na falta de interesse em realmente investir em políticas que garantam a mudança dessa desigualdade entre homens e mulheres, limitando-se somente à esfera das discussões sociais. Afinal, por trás de toda sociedade bem sucedida, é necessário que haja uma mulher sobrecarregada pela responsabilidade de cuidar.
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