O mês de junho é conhecido internacionalmente como o período do ano em que é celebrado o Orgulho LGBTQIAPN+, marcado pelas icônicas e tradicionais paradas ao redor do globo. Contudo, é no Brasil que ocorre a maior parada pela diversidade sexual do planeta. Comemorada anualmente em São Paulo, o evento ocupa as históricas ruas da Avenida Paulista. No início do mês passado (02/06), ela completou a sua 28° edição. Apesar desse fato, o país apresenta dados alarmantes em relação a essa parcela da população, no qual tristemente figura em rankings de violência. Conforme o Grupo Gay da Bahia - a mais antiga Organização Não Governamental LGBTQIAPN+ da América Latina - o Brasil registrou 257 mortes de pessoas LGBTs no ano de 2023.
A parada é um marco para a luta da comunidade queer no país, que conquistou avanços importantíssimos, como o direito à união estável entre casais homoafetivos. Contudo, imersos pela euforia e as festividades que preenchem as ruas da avenida, um fato passa despercebido. Antes mesmo da chegada dos participantes para prestigiar o evento, inúmeros indivíduos já ocupam o espaço e, principalmente, as vias: pessoas em situação de rua. Realidade essa, que também atinge parte da comunidade LGBTQIAPN+.
Legenda: Tratando-se do recorte de raça, pessoas negras são maioria em situação de rua. Imagem: Reprodução/Rui Duarte via Flickr.
Segundo relatório divulgado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), publicado em 2023, que tinha como objetivo traçar um diagnóstico dessa população, 62% das pessoas em situação de rua no país, estão localizadas na Região Sudeste. Entre os estados, São Paulo concentra a maior parcela, com cerca de 95 mil pessoas, sendo a maior parte na capital, com, aproximadamente, 53 mil brasileiros desabrigados. Tal cenário também é uma realidade a ser enfrentada pelo Estado do Ceará. De acordo com matéria publicada pelo portal g1, em março deste ano, Fortaleza figura como a capital com a 5° maior população em situação de rua do país, com mais de 8 mil cearenses.
Os números chamam a atenção para uma exclusão socioeconômica que assola o Brasil. Dentre os fatores que levam a esse quadro, o desemprego e o consumo de drogas - tido como uma questão de saúde pública - são apontados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, como fatores que influenciam no agravamento desse cenário. Entretanto, problemas familiares também contribuem para o crescimento dessa população. Nesse sentido, tratando-se de pessoas LGBTQIAPN+, este torna-se o principal motivo de verem nas ruas a sua única possibilidade de sobrevivência.
Isso porque, comumente, é no ambiente familiar que esses indivíduos são inicialmente submetidos a condições de violência e abuso. O preconceito e a não-aceitação resultam na negação de suas identidades de gênero e orientação sexual. Isso é fruto, em parte, de discursos proferidos por líderes e entidades religiosas, que deturpam a fé, promovendo ações que disseminam homofobia e intolerância em um Estado supostamente laico. Apesar desse fato, o Brasil é composto de maioria cristã, no qual “fiéis” utilizam-se de sua liberdade religiosa para justificar e cometer crimes de ódio.
Legenda: Charge do cartunista brasileiro Carlos Latuff. Imagem: Reprodução/Latuff.
Com isso, quando são expulsos de casa ou decidem por deixar as suas comunidades, é nas ruas e espaços públicos que jovens e adultos LGBTs enxergam um vislumbre de esperança. Porém, as ruas também se configuram como uma extensão da violência domiciliar, em que esses corpos continuam expostos ao dano, mesmo que em uma escala, em tese, minimamente, menor.
Conforme a Organização das Nações Unidas (ONU), o fator da discriminação não só aumenta o risco de pessoas LGBTs irem viver nas ruas, como também resulta na violação de outros diretos humanos, uma vez que estes encontram-se na condição de desabrigados. Nesses locais, eles tornam-se mais vulnerabilizados em razão das condições sub-humanas com a qual se deparam, pelo fato de serem LGBTs. São indivíduos que não são tidos como iguais, mesmo perante aqueles em condições semelhantes de ausência habitacional.
Tratar e lançar luz sobre esse debate torna-se algo urgente, na medida em que, inclusive a mídia, se exime de noticiar um fato que impacta milhares de vidas pelo país. Em entrevista à Rede Brasil Atual, o Padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral da População da Rua em São Paulo, ao ser questionado sobre a relação da mídia com pessoas em situação de rua, afirmou: "É conflitiva, espetacular e de não entendimento do mundo da rua e suas consequências. Na maior parte das vezes, é um interesse factual, um interesse episódico. Não tem nenhum interesse existencial, nenhum interesse no processo de vida dessas pessoas".
Nesse quesito, a urgência de ações governamentais, pode ser percebida na aprovação da Lei 14.821, de autoria da deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP). Sancionada em 2023, ela instituiu a Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua. Esta é a primeira lei federal a criar uma política que visa garantir os direitos básicos de pessoas sem-tetos em território nacional. A aprovação da lei é uma conquista histórica, e ressalta a carência de outros dispositivos legais de combate a esse problema. Mesmo que pioneira, tal legislação ainda apresenta lacunas em relação às vivências de pessoas LGBTQIAPN+ em situação de rua. Uma vez que a lei não exige ou orienta um treinamento específico para lidar com as necessidades desses indivíduos, podendo resultar em atendimentos discriminatórios.
Legenda: Deputada Federal Erika Hilton (PSOL-SP) na Câmara dos Deputados, em Brasília. Imagem: Reprodução/Pablo Valadares.
Por isso, é vital a elaboração de políticas públicas que possibilitem e garantam as nossas existências como sujeitos no mundo. Enquanto o valor da dignidade não nos for assegurado, tornaremos a marchar. É por este motivo que o direito ao voto deve ser exercido, por toda a comunidade LGBTQIAPN+. Os pleitos municipais, previstos para outubro deste ano, são a oportunidade de tornar as nossas vidas visíveis, e, sobretudo, vivíveis, isto é, garantir o acesso às necessidades básicas. Nisto, inclui-se o bem-estar físico, mental e social.
É importante compreender que é através de alianças entre os setores progressistas e de bases, que nossas agendas e pautas políticas terão avanços concretos. Votar em branco ou permitir que outros escolham por nós, é o mesmo que silenciar a si mesmo, a uma comunidade inteira. Permanecemos em silêncio por demasiado tempo, agora basta, queremos barulho.
Legenda: Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera, respectivamente, nas ruas de Nova York em 1970, durante protesto promovido pela Ação Revolucionária das Travestis de Rua (STAR). Imagem: Reprodução/Internet.
Discutir o crescimento de pessoas LGBTQIAPN+ em situação de rua, é necessário para relembrar o passado e mudar o presente. Porque, foi justamente nas ruas, que a luta por direitos de grupos historicamente marginalizados teve início, com a Revolta de Stonewall em 1969. É por este motivo que julho é tido como o mês de celebração do orgulho LGBTQIAPN+. Que tornemos então, a voltar os nossos olhos para as ruas. Porque é nelas que muitos dos nossos continuam vivendo, nas margens de uma sociedade que os enxerga como menos do que são: humanos.
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