A vida cotidiana de qualquer pessoa é uma avalanche constante de informações, notícias, fofocas e opiniões. Para quem trabalha na área de comunicação, essa enxurrada parece multiplicar-se. Recentemente, me senti sufocado - essa é a única palavra que define bem o meu estado - por notícias que, até pouco tempo atrás, eu não refletiria tanto, achava que eram apenas parte da rotina.
Uma dessas notícias foi a decisão do Governo Federal do Peru de classificar a transexualidade como uma doença. Outra foi a denúncia contra Elizeu Carvalho de Casto, suspeito do lesbocídio da estudante Ana Carolina, aceita pelo Ministério Público com cinco meses de atraso após a ocorrência do crime
Essas manchetes ficaram martelando na minha mente. Sabe quando você desperta de um feitiço e começa a enxergar a realidade? Percebi que havia caído na ilusão de que o mundo estava progredindo na luta pelos direitos da comunidade LGBTQ+, que tudo estava bem, e que a comunidade poderia focar em outras questões.
Protesto contra a decisão do Peru de classificar a transsexualidade como doença (Foto: Martin Meija)
Uma percepção pura da minha realidade como homem cis branco.
Mas com um estalo, a realidade se impôs. NÃO, não está tudo bem. Meus irmãos e irmãs estão sendo xingados, machucados, invalidados e MORTOS diariamente. No Ceará, por exemplo, já foram registrados 110 crimes de homofobia e transfobia até abril de 2024, segundo a Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública do estado.
A comunidade queer parece estagnada. Quando começamos a banalizar o ódio contra nós? Quando paramos de nos indignar? Por que a luta da comunidade parece tão silenciosa?
Eu sei que é exaustivo, frustrante e gera ansiedade, raiva, culpa; Dói bastante. Entretanto, nosso corpo é político, nossa vivência é luta. (In)felizmente, essa é nossa vida. Eu, por exemplo, não queria ter que ensaiar todos os dias como reagir se alguém me ameaçar na rua por estar com meu namorado.
Mas muitos lutaram por nós estarmos aqui hoje. É justo parar agora?
No dia 17 de maio, celebramos o Dia Internacional contra a LGBTQfobia. A data é em alusão ao momento em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) deixou de classificar a homossexualidade como uma doença e abandonou o termo "homossexualismo". A conquista ocorreu em 1990, enquanto, apenas em 2018, a OMS retirou a transexualidade da lista de doenças e distúrbios mentais.
Às vésperas de uma data significativa como essa, o Ministério da Saúde do Peru emitiu um decreto que representa um retrocesso tanto para o país quanto para toda a comunidade. O decreto leva em consideração que a população trans enfrenta problemas de saúde mental devido às suas identidades, alegando que essa classificação facilitaria o acesso do grupo aos serviços de saúde pública.
Cartaz "Orgulho é uma revolta!" em frente ao The Stonewall (Foto: Robert K. Chin)
Em teoria, isso poderia parecer uma tentativa de mostrar 'boas intenções' ao fornecer acesso à saúde. No entanto, é uma espécie de Cavalo de Troia: estão classificando a transexualidade como uma doença mais uma vez. É absurdo esperar que a comunidade trans se aproxime dos serviços de saúde quando já estão sendo rotulados como doentes simplesmente por serem quem são.
O Peru não é o primeiro e não será o último país a ter leis problemáticas. No mês passado, o Vaticano emitiu documentos denunciando a "teoria de gênero", afirmando que qualquer cirurgia de mudança de sexo ameaça a "dignidade única" de uma pessoa. Na prática, o Papa Francisco estava equiparando pena de morte, guerra, eutanásia, abuso sexual e pobreza às decisões que pessoas LGBTQIA+ tomam sobre seus próprios corpos, definindo como ameaças à dignidade humana.
Mas onde estávamos quando tudo isso foi anunciado? Quantas publicações fizemos em apoio à população trans do Peru? Viram posts de indignação? Quantos artistas e políticos que se dizem aliados se posicionaram sobre os casos? Quando vamos nos reunir para debater e garantir que não aconteçam mais retrocessos no Brasil e no resto do mundo?
O legado construído pelo movimento LGBT+ nas últimas décadas deve ser honrado. Os avanços conquistados custaram muito à militância política e precisam ser preservados e ampliados. Devemos continuar a lutar pela construção de um Estado Democrático de Direitos livre de transfobia, homofobia, racismo e opressão de gênero. Somente assim poderemos garantir que todas as pessoas vivam com dignidade e respeito.
Este texto é um desabafo e um chamado para que todos se organizem novamente, criem um senso de comunidade, alinhem-se com as pautas da comunidade LGBTQIA+, entendam os anseios e dificuldades atuais que nossa família enfrenta. Precisamos sair da teoria acadêmica e enfrentar a verdadeira realidade das ruas. Porque se Deus é por nós, quem será contra nós? A resposta é óbvia: todos.
Revisão: Arthur Albano
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