Em um universo distópico, devastado por fungos que consomem a mente humana e transformam a população mundial em sua pior versão, surge Ellie. Em uma indústria cercada pelo heroísmo na figura masculina e o estereótipo de donzela em perigo, você já imaginou encontrar representatividade em um jogo de ficção científica?
The Last of Us é um jogo de mídia convencional lançado pela empresa Naughty Dog em 2013. Apresentado ao público há uma década, o jogo conquista corações até hoje, por possuir raízes narrativas muito mais profundas do que o esperado.
Por meio de designs gráficos modernos para sua época, a produção é considerada uma das melhores lançadas pelo estúdio americano de jogos da PlayStation. Com recorde de jogo mais indicado pela BAFTA Games Award, este reúne uma história que desperta um relacionamento com o público baseado em experiências universais que agregam a sua narrativa saudosista.
O jogo se ambienta na trajetória de cura do contrabandista Joel Miller que perdeu sua filha no surto da doença ao lado de Ellie Williams – uma órfã imune à contaminação fúngica. No decorrer de sua jornada, é possível acompanhar a personagem ganhar mais independência e protagonismo, principalmente em relação a sua sexualidade.
Ellie representa uma mudança em uma indústria misógina em que pautas sobre gênero e orientação sexual não são comuns. Decerto, uma das questões que fazem o jogo se destacar na representatividade é a presença de uma diretora na produção da narrativa. Halley Gross, que, junto a Neil Druckmann, aborda a questão feminina sem os chavões comuns na indústria em mulheres.
Saindo da caixa da heteronormatividade e dando abertura para personagens complexos, The Last of Us causa discussões sobre a importância de representar diversas vivências. Tal mudança, realizada ainda em um universo controlado pela branquitude e masculinidade, é essencial para permitir a representatividade a partir do cotidiano. Sem estereótipos ou plots interpretando essa característica como algo negativo ou fonte de sofrimento.
Esse movimento de oposição ao “comum”, abre portas para uma representação sólida de pluralidade e diversidades, não só na esfera heteronormativa, mas também dentro da comunidade LGBTQIAP+. A presença de um personagem da comunidade em qualquer produção artística não se torna sinônimo de representatividade, visto que apenas a inclusão desta característica não exclui o problema da heteronormatividade na história.
The Last of Us se difere dos demais jogos ao criar uma teia de narrativas profundas para seus personagens, trabalhando a empatia nas pessoas que os jogam. A experiência que os jogadores são submetidos ao viverem a história da protagonista normatiza a visão de sexualidade, aprendendo a respeitar e se conectar com os personagens.
Uma das cenas mais marcantes é a descoberta do público sobre a sexualidade de Ellie que acontece na extensão do jogo, The Left Of Us: Left Behind. Lançado em 2014, o jogo foca no passado da personagem com sua melhor amiga, Riley. Ao mostrar um rápido acontecimento entre as duas, a produção aprofunda-se na vida pessoal de Ellie, em sentimentos comuns da pré-adolescência e a maneira como essa relação afetou o comportamento da personagem.
O jogo também criou polêmicas com os mais conservadores. Quando a expressão da sexualidade de não-heterossexuais é feita de maneira explícita, muitas vezes é percebida como algo que não se encaixa no contexto e The Last of Us é vítima de ataques homofóbicos pelo público. Outro exemplo dessa recepção hostil aos trabalhos com representatividade LGBTQIAP+ aconteceu com o jogo Tell Me Why (2020). A produção atualmente é proibida em diversos países por ter o primeiro personagem trans jogável de um jogo eletrônico.
Em The Last of Us Part 2, com Ellie em sua maioridade, o jogo novamente surpreende ao apresentar narrativas que mudam a singularidade da heteronormatividade de nossa sociedade. A representação dessa vez acontece por meio da família, com duas mulheres cuidando de uma criança e reformulando o saber da "família tradicional". A falta de obstáculos a isso e as mudanças narrativas que acontecem perto do arco final não destroem essa representatividade. Destaca-se um dos motivos pelo qual o jogo se torna ícone de diversidade, a normalidade em apresentar confrontos que não se liguem às sexualidades das personagens.
Video games são, sem dúvidas, um meio de diversão que entra em contato com outros mundos e compartilham experiências. The Last Of Us entrega qualidade de produção, de atuação, de narrativa e de representatividade. Até que os jogos de viés não convencional ganhem o mesmo reconhecimento, The Last of Us continua a atingir a mídia popular e agora encara mais desafios e mudanças em sua adaptação para televisão.
Com ingredientes para se tornar uma das maiores produções atuais, a obra terá que enfrentar críticas e preconceitos para garantir sua estadia, principalmente em uma indústria ainda muito controlada pelo machismo e pela homofobia.
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